Não
espere condescendência! Afinal, quem se condoía verdadeiramente frente à
violência perpetrada contra milhões de negros arrancados à força de suas casas
e famílias e pátrias? Homens, mulheres e crianças, entregues ao arbítrio de
outros homens que, a partir daquele momento, passavam a possuí-los? Esqueça
Isaura, a escrava branca retratada na ficção. Esqueça as histórias romantizadas
de senhores de escravos apaixonados. Evoque os estupros à luz do dia e sob a
claridade da noite. Visualize o sangue jorrando de forma cruel e sádica. A tal
ponto que a história tem pudores de revelar. E contente-se pelas (poucas) vozes
isoladas que ousaram desafiar tal sistema e colocar-se em risco. Alegre-se,
afinal, pela literatura dolorosamente inspirada, qual Castro Alves com seu
navio negreiro. Rejubile-se diante da tela grande quando alguns filmes bem
produzidos aproximam-se um pouco mais da verdade dolorida e dolorosa, como a
“Cor Púrpura”, “Amistad” ou, ainda, “Lincoln”. Todos de Steven Spielberg.
Mas,
cale o seu resquício de sentimentalismo e concessões àquilo que foi
romantizado. Esqueça a mal sentida dor daqueles que ousam retratar a
escravidão. Quem sabe a dor da carne dilacerada e a dor maior que é a dor da
alma sangrando, frente à injustiça e à insensibilidade? Quem pode dizer que
conhece o real estado da alma materna diante de filhos brutalmente arrancados
aos seus cuidados e levados para nunca mais?
O
que restaria para doer ainda naquele que clama a morte. E ninguém ouvir seu
clamor. Mil vezes a morte a viver condenado ao inferno. Mas a morte, nesses
casos é consolo. E negro não está ali para ser consolado. Está ali para servir.
Negro morto é prejuízo. “Quem é que vai pagar por isso?”
Ninguém
pagou até hoje. Exceto aqueles milhões de desgraçados, sem nome, sem
documentos. Vivendo um show inimaginável de horrores a cada novo dia trazido
pelo horizonte. De nenhum lado a devida compaixão à altura dos sofrimentos
causados.
Malditos
anos de escravidão, referendados pelos diplomas legais da época, que permitia
aos senhores de escravos o direito à sua posse, o direito de negociá-lo,
doá-lo, castigá-lo e até mesmo o direito de abandoná-lo quando doente e
imprestável para o trabalho. Direito de vida e de morte. Maldito diploma legal,
devidamente seguido até pela Santa Madre Igreja, ela mesma proprietária de
numerosos escravos. Negros e, portanto, sem alma, segundo a sua justificativa.
Obrigados
à obediência, obrigados ao abandono de sua fé e de seus cultos, porque negro
não tinha vontade própria. Nem mesmo Deus tinha boa vontade diante dos homens
que ele mesmo criara negros. Afinal, a fonte de onde saímos não é a mesma? E
Deus iria ouvir o culto dos negros, diante de tanta prece dos brancos?
O
contrário, repetem, ainda, os reacionários dos dias atuais: Lançou-lhes uma
maldição, segundo o Livro da Gênesis, 9:20-27, quando Noé, depois de beber e
ser visto nu pelo seu filho Cam, resolve amaldiçoar o filho deste, Canaã, já
que não podia amaldiçoar o próprio filho, pois isso significava, segundo os
costumes da época, amaldiçoar a si mesmo. E durante anos, os piedosos cristãos
utilizaram-se dessa passagem para justificar o opróbrio da escravidão,
interpretando vil e mentirosamente os supostos fatos bíblicos. Ora, em primeiro
lugar, não fora Deus quem lançara a maldição. Segundo, a maldição recaíra sobre
Canaã, um dos netos de Noé que, assim, poupava a si mesmo de ser amaldiçoado,
já que, abençoando um filho, o homem abençoava a si mesmo enquanto que,
amaldiçoando-o...
E,
em terceiro lugar, considerando-se, ainda o livro da Gênesis, quando da
distribuição dos povos sobre a face da terra (Tábua das nações, Gênesis, 10),
vimos que, de cada filho de Noé, teria se originado uma raça. Os Camitas,
originários de Cam (e não de Canaã, o amaldiçoado), são os que possuem cor em
sua pele – negros, amarelos e vermelhos. Verdade que os interessados omitiram.
Como omitiram o fato de que, segundo as obras de historiadores, arqueólogos e
antropólogos, é inigualável a contribuição dos povos camitas para a humanidade.
Todas as civilizações mais representativas da antiguidade, foram fundadas e
desenvolvidas, pelos povos camitas. Da mesma forma que as riquezas hoje
ostentada pelas mais diversas nações, foram construídas com o suor do povo
negro.
Mas,
a quem interessava tudo isso, quando melhor se lucrava estigmatizando aqueles
que tinham a pele negra? E quem poderia socorrê-los, já que, até mesmo os ditos
“Cristãos” e que, portanto, deveriam pregar o amor, engendraram uma maneira de
justificar tamanha selvageria?
Entregues
à própria falta de sorte e sacrificados por desumanos defensores, os anos de
escravidão passaram lentamente e originou uma mancha ainda longe de se
dissolver por completo. Uma mancha que, até os homens que se movem de “íntima
compaixão” pela dor do seu semelhante, tem dificuldades de absorver.
Mas,
é bom que seja absorvido o realismo de um pequeno trecho dessa história. Uma
parte ínfima, que chega às telas do mundo inteiro, através do filme “12 anos de
escravidão.” A história real de Solomon Northup, violinista negro de Nova York,
que foi raptado e vendido como escravo em 1841. Solomon sobreviveu para contar
a sua experiência frente ao horror, no livro autobiográfico, publicado em 1853
e que agora chega aos cinemas, em produção modesta para os padrões atuais.
Um
pai de família respeitado. Um homem letrado. Livre. Mas, tragédia das
tragédias: um homem de cor negra! E é a cor da sua pele que vai definir sua
vida daí por diante. É isso que define o seu destino. Como definiu o destino de
milhões (tantos, que números exatos escaparam à contagem da história). A
partir daí é o chicote da humilhação, doendo mais na alma do que na pele. Tudo
é chocante, porque é a vida real, chicoteando nossas mentes para a plena
compreensão da história. E, diante da verdade, servida de forma tão crua, quem
poderá afirmar que Deus não escuta as nossas preces? Ou os nossos cultos?
Ficha Técnica:
Título Original: 12 Years a Slave
Título Nacional: 12 Anos de Escravidão
Gênero: Drama
Direção: Steve McQueen
Elenco: Chiwetel Ejiofor, Michael Fassbender,
Benedict Cumberbatch, Paul Dano, Paul Giamatti, Lupita Nyong’o, Brad Pitt,
Alfre Woodard, Sarah Paulson, Quvenzhané Wallis
Roteiro: John Ridley, Steve McQueen
Produção: Anthony Katagas, Brad Pitt
Fotografia: Sean Bobbitt
Ano: 2013
Estréia: 28/02/2014